A newsletter de Fevereiro de 2009 da FNAC apresenta-se com uma selecção de livros para descobrir 200 anos de ciência. O motivo é, claro, Charles Darwin. Sendo uma selecção, ela permite-nos perceber o que a FNAC entende por ciência e sobretudo aquilo que ela acha que representa de alguma forma "2oo anos de ciência", ou seja, se tivérmos paciência e dinheiro para ler a tal "selecção de livros", do princípio ao fim, então tínhamos certamente um panorâmica muito credível daquilo que foi a ciência nos últimos dois séculos. Vamos então à selecção.
- Origem das Espécies, de Charles Darwin
- Sobre a selecção natural, de Charles Darwin
- A caixa negra de Darwin, de Michael Behe
- Evolução a duas vozes, de Teresa Avelar e Carreira das Neves
Clicando na tal newsletter, somos de imediato reencaminhados para o sítio da FNAC, onde nos surge mais uma quantidade "seleccionada" de livros sobre "200 anos de ciência", desta feita devidamente catalogada em: EVOLUCIONISMO, VIAGENS CIENTÍFICAS, ETOLOGIA, GENÉTICA E MATEMÁTICA, CÉREBRO, TERRA, e CIÊNCIA PARA TODOS.
Clicando, a título de exemplo, no EVOLUCIONISMO, surge-nos (a azul e entre parêntesis rectos surge a classificação de cada um destes livros por parte da FNAC):
- Charles Darwin On the Origin of Species: The Illustrated Edition, de Charles Darwin/David Quammen [Divulgação científica]
- A Origem das Espécies, de Charles Darwin [Divulgação científica]
- A expressão das emoções no homem e nos animais, de Charles Darwin [Divulgação Científica]
- Sobre a selecção natural, de Charles Darwin [Divulgação científica]
- The Voyage of Beagle, de Charles Darwin [Literatura estrangeira]
- The Descent of Man, de Charles Darwin [Filosofia]
- Darwin - uma vida de ciência, de Michael White e John Gribbin [História]
- Autobiografia, de Charles Darwin [Divulgação científica]
- A caixa negra de Darwin, de Michael Behe [Divulgação científica]
- Evolução a duas vozes, de Teresa Avelar e Carreira das Neves [Divulgação científica]
- A linguagem de Deus, de Francis Collins [Religião]
- Quando éramos peixes, de Neil Shubin [Divulgação científica]
- Henriqueta, a tartaruga de Darwin, de José Jorge Letria [Livros]
Eu vejo isto e só me apetece gritar. Então a FNAC classifica "The Descent of Man" como uma obra filosófica? E nesta selecção tão aprumada enfia "A linguagem de Deus" e "A caixa negra de Darwin"? Desculpem, mas esta não era uma "selecção de livros para descobrir 200 anos de ciência"? Pela vossa saúde, então para a FNAC ciência é colocar na mesma prateleira Michael Behe, um criacionista e acérrimo defensor do intelligent designer, e Charles Darwin? Mas por que critérios é que esta gente se orienta? A resposta veio uns dias mais tarde, quando fui comprar um livro à Bulhosa do Oeiras Parque. Lá estava um expositorzinho com um punhado de livros sobre ciência, tudo tão arrumadinho que a palavra "Darwin" parecia que estava iluminada a néon. Aliás, ter a palavra Darwin no título parece ser um critério universal de classificação. E lá estava, mais uma vez, "A caixa negra de Darwin", de Michael Behe. Mas o que se passou a seguir foi clarividente quanto aos tais critérios. Uma das funcionárias, com ar de chefe, dizia para outro, com ar de empregado: «- Pois, mas eu acho que as ideias dele são válidas e portanto o livro fica aqui.» Fiquei logo esclarecido em matéria de critérios.
Mas não julguem que isto é pírrico. Vejam o que diz Stephen Jay Gould na introdução à edição revista e aumentada de "A Falsa Medida do Homem":
«O título que eu tinha inicialmente escolhido para A Falsa Medida do Homem teria homenageado o meu herói Charles Darwin retomando a afirmação magnificamente incisiva que ele fez a propósito do determinismo biológico para concluir a denúncia da escravatura em Viagem a bordo do Beagle. Eu gostava de ter intitulado este livro de Grande é o nosso pecado - a partir da frase de Darwin citada em epígrafe: "Se a miséria dos nossos pobres não for causada pelas leis da natureza, mas sim pelas nossas instituições, grande é o nosso pecado."
Não segui esta minha inclinação inicial - e estou convencido de ter tomado a decisão certa - porque sabia muito bem que o meu trabalho ficaria para sempre esquecido na secção de religião de muitas livrarias (tal como o meu livro O Sorriso do Flamingo foi parar à secção de ornitologia de um grande estabelecimento de Boston, do qual não vou aqui mencionar o nome). Mas já se viram coisas piores. Aconteceu-me uma vez, numa outra grande e igualmente prestigiada loja de Boston, encontrar um exemplar do manifesto estudantil dos anos 1960 The Student as Nigger na estante de "Relações Inter-raciais". O meu amigo Harry Kemelman, autor da magnífica série de romances policiais protagonizados pelo rabi-detective David Small, disse-me um dia que o primeiro título dessa colecção - Friday the Rabbi... ("Sexta-feira, o Rabi...") apareceu uma vez numa lista de livros infantis como Freddy the Rabbit... ("Freddy, o Coelho..."). Mas, por vezes, há males que vêm por bem. Alan Dershowitz, um grande amigo meu, contou-me certa vez que uma mulher tinha conseguido adquirir o seu livro Chutzpah, tendo-lhe bastado para isso dizer ao empregado da livraria: "Quero aquele livro de que não consigo pronunciar o título, daquele autor que não consigo recordar o nome".»
Tudo isto pode parecer ser irrelavante e um pormenor sem importância. Mas não é. Tudo isto é sintoma de uma confusão generalizada das coisas. Não há, entre nós, tradição de uma cultura científica. Ouve-se umas coisas, lê-se também umas coisas, mas em regra o público em geral confunde persistentemente alhos com bugalhos. Há claramente um fosso muito grande entre aquilo que os cientistas sabem e aquilo que o público em geral sabe. E nós, como académicos, devíamos sentir a obrigação cívica de dar um contributo para o estreitamento desse fosso, que é ao mesmo tempo um contributo para a preservação da inteligência que todos sabemos estar ameaçada de extinção. Entretanto, valha-nos os empregados das livrarias que, no apoio ao directo ao cliente, lá vão conseguindo atenuar um bocadinho o disparate universal.
- Origem das Espécies, de Charles Darwin
- Sobre a selecção natural, de Charles Darwin
- A caixa negra de Darwin, de Michael Behe
- Evolução a duas vozes, de Teresa Avelar e Carreira das Neves
Clicando na tal newsletter, somos de imediato reencaminhados para o sítio da FNAC, onde nos surge mais uma quantidade "seleccionada" de livros sobre "200 anos de ciência", desta feita devidamente catalogada em: EVOLUCIONISMO, VIAGENS CIENTÍFICAS, ETOLOGIA, GENÉTICA E MATEMÁTICA, CÉREBRO, TERRA, e CIÊNCIA PARA TODOS.
Clicando, a título de exemplo, no EVOLUCIONISMO, surge-nos (a azul e entre parêntesis rectos surge a classificação de cada um destes livros por parte da FNAC):
- Charles Darwin On the Origin of Species: The Illustrated Edition, de Charles Darwin/David Quammen [Divulgação científica]
- A Origem das Espécies, de Charles Darwin [Divulgação científica]
- A expressão das emoções no homem e nos animais, de Charles Darwin [Divulgação Científica]
- Sobre a selecção natural, de Charles Darwin [Divulgação científica]
- The Voyage of Beagle, de Charles Darwin [Literatura estrangeira]
- The Descent of Man, de Charles Darwin [Filosofia]
- Darwin - uma vida de ciência, de Michael White e John Gribbin [História]
- Autobiografia, de Charles Darwin [Divulgação científica]
- A caixa negra de Darwin, de Michael Behe [Divulgação científica]
- Evolução a duas vozes, de Teresa Avelar e Carreira das Neves [Divulgação científica]
- A linguagem de Deus, de Francis Collins [Religião]
- Quando éramos peixes, de Neil Shubin [Divulgação científica]
- Henriqueta, a tartaruga de Darwin, de José Jorge Letria [Livros]
Eu vejo isto e só me apetece gritar. Então a FNAC classifica "The Descent of Man" como uma obra filosófica? E nesta selecção tão aprumada enfia "A linguagem de Deus" e "A caixa negra de Darwin"? Desculpem, mas esta não era uma "selecção de livros para descobrir 200 anos de ciência"? Pela vossa saúde, então para a FNAC ciência é colocar na mesma prateleira Michael Behe, um criacionista e acérrimo defensor do intelligent designer, e Charles Darwin? Mas por que critérios é que esta gente se orienta? A resposta veio uns dias mais tarde, quando fui comprar um livro à Bulhosa do Oeiras Parque. Lá estava um expositorzinho com um punhado de livros sobre ciência, tudo tão arrumadinho que a palavra "Darwin" parecia que estava iluminada a néon. Aliás, ter a palavra Darwin no título parece ser um critério universal de classificação. E lá estava, mais uma vez, "A caixa negra de Darwin", de Michael Behe. Mas o que se passou a seguir foi clarividente quanto aos tais critérios. Uma das funcionárias, com ar de chefe, dizia para outro, com ar de empregado: «- Pois, mas eu acho que as ideias dele são válidas e portanto o livro fica aqui.» Fiquei logo esclarecido em matéria de critérios.
Mas não julguem que isto é pírrico. Vejam o que diz Stephen Jay Gould na introdução à edição revista e aumentada de "A Falsa Medida do Homem":
«O título que eu tinha inicialmente escolhido para A Falsa Medida do Homem teria homenageado o meu herói Charles Darwin retomando a afirmação magnificamente incisiva que ele fez a propósito do determinismo biológico para concluir a denúncia da escravatura em Viagem a bordo do Beagle. Eu gostava de ter intitulado este livro de Grande é o nosso pecado - a partir da frase de Darwin citada em epígrafe: "Se a miséria dos nossos pobres não for causada pelas leis da natureza, mas sim pelas nossas instituições, grande é o nosso pecado."
Não segui esta minha inclinação inicial - e estou convencido de ter tomado a decisão certa - porque sabia muito bem que o meu trabalho ficaria para sempre esquecido na secção de religião de muitas livrarias (tal como o meu livro O Sorriso do Flamingo foi parar à secção de ornitologia de um grande estabelecimento de Boston, do qual não vou aqui mencionar o nome). Mas já se viram coisas piores. Aconteceu-me uma vez, numa outra grande e igualmente prestigiada loja de Boston, encontrar um exemplar do manifesto estudantil dos anos 1960 The Student as Nigger na estante de "Relações Inter-raciais". O meu amigo Harry Kemelman, autor da magnífica série de romances policiais protagonizados pelo rabi-detective David Small, disse-me um dia que o primeiro título dessa colecção - Friday the Rabbi... ("Sexta-feira, o Rabi...") apareceu uma vez numa lista de livros infantis como Freddy the Rabbit... ("Freddy, o Coelho..."). Mas, por vezes, há males que vêm por bem. Alan Dershowitz, um grande amigo meu, contou-me certa vez que uma mulher tinha conseguido adquirir o seu livro Chutzpah, tendo-lhe bastado para isso dizer ao empregado da livraria: "Quero aquele livro de que não consigo pronunciar o título, daquele autor que não consigo recordar o nome".»
Tudo isto pode parecer ser irrelavante e um pormenor sem importância. Mas não é. Tudo isto é sintoma de uma confusão generalizada das coisas. Não há, entre nós, tradição de uma cultura científica. Ouve-se umas coisas, lê-se também umas coisas, mas em regra o público em geral confunde persistentemente alhos com bugalhos. Há claramente um fosso muito grande entre aquilo que os cientistas sabem e aquilo que o público em geral sabe. E nós, como académicos, devíamos sentir a obrigação cívica de dar um contributo para o estreitamento desse fosso, que é ao mesmo tempo um contributo para a preservação da inteligência que todos sabemos estar ameaçada de extinção. Entretanto, valha-nos os empregados das livrarias que, no apoio ao directo ao cliente, lá vão conseguindo atenuar um bocadinho o disparate universal.
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